Na
cidade de Brasiliand, está Ele, de chapéu, casaco, calça e bota de cano longo,
todos pretos. Sim, o Morte continua com aquele seu mesmo visual sombrio. Muitos
fotógrafos e jornalistas, carros importados, choros falsos de mulheres
enfeitadas que se olham constantemente no espelho entre uma rápida entrevista e
outra. Do outro lado, um cordão de isolamento separa os populares, que gritam
vozes de diferentes sotaques e dialetos, mal podendo ser compreendidos pelo
senhor poliglota ali presente. Desta vez o alvoroço não é culpa destes, que não
nasceram para serem notados mesmo. O Seu Morte, indiferente a tudo, chega à
portaria do presídio, trazendo consigo sua habitual maleta. Não traz mais a
pilha de papéis sobre a vida do candidato a morto. Agora faz tudo só com um tablet, acompanhado de modem de acesso
ilimitado. É difícil saber qual presídio libera o wi-fi
para os seus moradores. Aquele tipo de estabelecimento não é lugar novo pra
ele. Já está acostumado a ir religiosamente fazer o carregamento de alguém.
_
Bom dia, Seu Morte! Como vai?
_ Bom
dia, Seu...! – estranhou o comportamento do porteiro, nunca acostumado a tratar
bem os visitantes comuns. – O que há de especial por aqui?
_
Hum... Acho que pode ter material do bom.
_
Num presídio? O quê? Teve massacre coletivo?
_ Seu
Morte, o senhor vai ter que aguardar com calma... É político.
Seu
Morte teve um acesso de tosse repentino e bateu com suas mãos ossudas contra o
peito duro.
_
Político?!
_ Achei
que o senhor gostasse desse tipo...
_
Desde que eles não abram a boca. Não aguento lorotas.
_ De
qualquer forma, ainda não há nada garantindo. Morte de político é que nem os
demais serviços públicos. Demora para o processo ser encerrado.
_
Por que me chamaram com antecedência?
_
Parece que foi só um alarme falso pra comover o povão ingênuo e fazer um daquelas
dramas imbecis de novela. E chegou um bando de roupas vermelhas hoje. Tem tanta
peça dessa cor por aqui hoje que sua vestimenta preta nem vai chamar tanta
atenção como nos outros dias. Achei até que os vermelhos já fossem fazer um
ritual de despedida. Mas nada ainda.
_
Vermelho é uma das minhas cores favoritas... Os corpos... Então... Mas eu não
posso perder tempo assim. Meu trabalho anda disputado. Vou saindo correndo
daqui pra uma periferia. Acho que foram uns três moleques imprudentes. O
serviço lá rende sempre mais que o esperado.
_ Mas
essa molecada não toma jeito. E pior que a velharada também nem dá exemplo. Mas
pode indo que o Seu Jeremias está ali na cela dele.
Seu
Morte entra pelo longo corredor. Não está interessado em ninguém comum hoje. Só
quer saber do cliente especial do presídio. Do lado de fora da cela do tal
senhor, uma aglomeração de roupas vermelhas e vozes altas, não muito diferentes
da aglomeração popular vista do lado de fora. Seu Morte atravessa, sem a menor
paciência, o grupo indisciplinado. O preso está no meio de sua sala. Não se
mexe, apenas tem o olhar fixo e sério, olhando para um ponto invisível. E
também não pode usar mais o seu traje vermelho. Porém, ganhou um desenho de
cinco pontas feito por uma daquelas canetas infantis em sua testa.
_
Hey! O sinhô não pode entrar aqui – um senhor de bigode grosso interveio.
_
Mas quem você pensa que é?
_
Sou o cúmpli... Digo... Assessor do preso. Você não pode falar com ele sem
passar por mim, companheiro.
_ O
que você quer que eu faça então? Que faça uma passagem por meio de seu corpo?
_
Que tamanha insolência! – uma senhora loira, aparentemente com uma peruca mal
ajustada, entrou na conversa, ao mesmo tempo em que observava curiosa a moda do
Seu Morte, com o modelo preto que realçava seu perfil esguio.
_ Quietos,
bando! Sou o Morte! Deem-me licença agora que preciso conversar com o preso.
Vejam... Já está até com a marcação na testa. Perfeito.
Um
susto geral tomou conta daqueles rostos enrugados, alguns porém mal se mexiam
de tão congelados por aplicações de botox. Seu Jeremias continuou inerte.
_
Mas Seu Jeremias está vivo. Muito vivo! Olha que vida... – falou o bigodudo.
_
Ele é nosso herói! – bradou a loira de peruca.
_
Ele só não pode ficar aqui – o senhor careca, de voz mansa, que estava mais
próximo do preso, entrou na acalorada discussão.
_
Mas, por quê? Ele não está condenado? – indagou o Morte, com a curiosidade
mórbida que lhe é típica.
_ É tudo uma conspiração. Mentira da oposição. Inveja de
nossa posição! – disse o bigodudo.
_
Eles nos perseguem porque chegamos até aqui. – a loira.
_ E
chegaram rápido? A estrada estava tão ruim que preferi vir a pé. Tive que
descer de um caminhão cheio daquele povo vizinho. Como se chamam? Ah, sim... Os
bolivianos. O que vocês costumam fazer com eles por aqui?
_
Isso depende da posição social, Seu Morte. Alguns podemos abrigar em Brasiliand.
Os outros são mandados pra São Paulo – falou em uma arrancada só a mulher do
bando.
_
Quieta, companheira! – suspirou o bigodudo.
_
Mas não adianta esconder, Seu Silva. Quem você acha que costura nossas roupas
de grife?
O
Morte os observou. A cor vermelha enchia os seus olhos, assim como a expressão
cada vez mais deprimida de Seu Jeremias.
_ Desculpe-me
a intromissão, Seu Morte... Mas eu sempre achei que a Morte fosse mulher. – a
loira cutucou.
_
Mas não sou. As mulheres não sabem guardar segredos. Meu trabalho precisa ser
discreto.
_
Como assim? – ela ficou inconformada com a afirmação. – Eu sei fazer isso.
_ Nós
já percebeu... – comentou o assessor, cada vez mais tenso.
_
Seu Morte, o senhor vai ajudar a nossa causa nobre? Um político como o Seu
Jeremias tem história nesse país. O partido, a presidência, o fim da pobreza.
Nosso país vai virar um paraíso no futuro. – o careca que pouco falava voltou a
se manifestar, quase que cantarolando as palavras, em uma melodia pífia.
_ Mas,
esse Seu Jeremias vai morrer ou não hoje? – Seu Morte já estava se entediando.
_
Depende do que os exames vai dizer, meu caro Morte – o assessor.
_
Foi feito no hospital público ou particular? – o Morte aplicou sua experiência
como advogado nos tribunais pós-morte.
_ No
público, Seu Morte. Em algum momento na vida precisamos lançar mão disso – a
loira.
_
Não... – o Morte colou a mão sobre a testa riscada e girou a cabeça algumas
vezes.
_ O sinhô
precisa entender que tamo no Brasil, Seu Morte – falou o bigodudo com os olhos
arregalados.
_ Neste
país é preciso ser honesto com os companheiros de partido. Os amigos de classe,
meu amigo Morte. Já posso chamá-lo de amigo, certo? – o careca voltou.
O
Morte não se aguentou. Ficou de queixo caído. A boca sem dentes exposta.
_
Chega!
Ele partiu
rapidamente pelo corredor. Nunca teve tamanha vontade de ver a luz quanto após
abandonar aquela cela infestada de tagarelas.
Seu
Jeremias reagiu. Os olhos se mexeram e ele se levantou imediatamente, enquanto
os amigos admiravam extasiados a sua força inesperada. Também seguiu pelo
corredor vazio.
Mas
caiu no meio do percurso. Dores no peito o atingiram. E os camisas vermelhas
correram em sua direção.
_ Me
leva, Seu Morte! – foram os gritos finais de Seu Jeremias.