quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

A dama da cobertura



Jane morava na cobertura havia vinte anos. Trocara a antiga mansão, propriedade histórica da família em São Cristóvão, com medo da violência. 79 anos, orgulhava-se do recém-comemorado aniversário. Reunira toda a velha elite em sua cobertura de muitos metros quadrados, conforme se referia após esquecer o número exato. Cabelos loiros, tingidos, olhos castanhos, um tanto redondos e profundos, ela andava esquecendo tanto que precisava ser lembrada por sua empregada, a sábia e também velha Dona Gertrudes. Esquecia-se dos óculos, do nome do livro que havia começado a ler, de algumas das bebidas preferidas e até do nome de Félix, o gato. Mas não era um gato qualquer: era uma porcelana marrom que comprara no Catar em sua última viagem ao Oriente. Depois de tanto esquecer o nome do objeto marrom, foi recomendada por seu médico, Dr. Alejandro, a usar o nome de seu falecido bichano.
Dois imensos quadros adornavam a sala com sua imagem: um belo realista realçando sua beleza de moça, e outro feito por um pintor japonês que ela jamais conseguiu pronunciar o nome, todo em quadrados e retângulos retratando já a velha senhora, rugas em linha, foi uma encomenda recente. Mas mesmo a tantos metros do chão e jamais saindo sem proteção suficiente, a senhora divertia-se com a vida e as atrações das alturas. Suas festas de réveillon eram das mais requisitadas no Rio de Janeiro. Os fogos encantavam-na e faziam com que se lembrasse de quando o pai, o Sr. Abraão, magnata das pedras preciosas no século passado, levava a jovem para uma festa em Mônaco. Fazia tempo que não ia ao Mediterrâneo, alegando sentir falta do glamour de outrora.
Maridos foram três oficiais, mas alguns casos aqui e ali, sobretudo os espanhóis, como sempre gostara. O vermelho, a sensualidade, a capa. Não tinha filhos e sempre disse que não possuía instinto materno a tal ponto de criar um ser humano por tantos anos. Talvez fosse a ausência da figura materna, mãe morta quando a pequena Jane não passava dos cinco. Ruiva, filha de uma escocesa. “Uma dama. Mamãe foi uma dama”, orgulhava-se de dizer para qualquer um. Diziam que ela morrera envenenada por acidente ou caída de uma ponte. Até engasgada de caviar já escutara. Nunca quisera saber mais do que isso. O pai sabia ser divertido, ao menos, apesar de tantas viagens por trabalho ou outros motivos que sua ingenuidade infantil não conseguia enxergar além, ela concluiu depois. Moralista com discrição, já que fugia de rótulos, abominava certas coisas que via pela televisão quanto procurava alguma coisa agradável aos olhos. A vulgaridade, a vida nos morros, as músicas sem letras... Ficava aborrecida e logo mandava a velha Gertrude chamar a Orquestra Municipal para fazer uma apresentação privé em sua cobertura.
Gostava de seus filmes clássicos. Quando ficava entediada da solidão, pedia para que a velha Gertrudes se sentasse ao seu lado e escutasse as falas que ela teimava em repetir após tantas reprises. De Casablanca não cansava de cantar “As Times Goes By” e repetir “Sempre teremos Paris”, lembrando-se de um jovem pintor, amante passageiro. De “Um Bonde Chamado Desejo” vinha “Sempre dependi da boa vontade de estranhos”, quando ironizava sobre seus desejos não atendidos. E “Apertem os cintos. Vai ser uma noite turbulenta”, saída de “A Malvada”, era sempre pronunciada quando se vestia para uma festa e já tomava o champanhe antes dos convidados.
Aturava alguns convidados por conveniência. Senhoras sem memória, outras fofoqueiras querendo saber de sua vida amorosa, alguns senhores que ainda tentavam uma chance há décadas, enquanto Jane disfarçava para não deixá-los ir embora. Da política nem gastava seu tempo discutindo. Os amigos políticos ou já estavam debaixo da terra ou gagás demais para continuarem discutindo em bancadas como que em feira. Jane não cansava de dizer que pessoas de seu porte não poderiam se rebaixar daquela forma. “Dou dinheiro para caridade. Faço minha parte!”, falava mesmo quando não tinha ninguém por perto, após ver notícias de escândalos de corrupção.
Para completar a apresentação ao ar livre e pratos encomendados aos chefs mais conceituados de acordo com sua avaliação pessoal, ainda exibia, ao longe, as balas que cruzavam as favelas e faziam uma decoração involuntária em seu céu. “Ao menos luzes eles sabem fazer”, ironizava após seguidas taças de seu champanhe favorito, indicado pelo primo distante muitos graus, o velho amigo Giancarlo. Jane gostava de festejar e sabia receber, disso seus convidados não podiam se queixar.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Um homem. Uma mulher. Um elevador




Na espera. Moça atraente, cabelo escuro, preso, sendo duas mechas deixadas ao lado do rosto, bolsa clara, grande, brincos discretos, mas brilhantes. O celular sendo mexido em uma das mãos. 30 anos, aparenta.
Porta do elevador aberta.
Ela se vê no espelho grande que ocupa o fundo do recinto. Engravatado, homem atraente, cabelo castanho, penteado para trás, levemente grisalho, mas ele deve ter só uns 35. Ele segura um jornal, pedaço grande, dobrado de forma circular.
O homem segura a porta ao ver que a mulher demora a entrar, distraída com o celular.
_ Bom dia – cumprimenta, sorriso discreto, criando expectativas, sem dar importância ao risco que isso representa. Não é a primeira vez que ele a vê, já tinha observado passar no hall algumas vezes.
A mulher acena com a cabeça, parece que o dia dele está começando bem. Mas não olha nos olhos do moço. Coitado, ele esperou tanto por esse momento de proximidade.
_ Solteira. Meu status mudou – aperta sem olhar o botão do térreo.
O homem, pego de surpresa, fica sem reação. Reage:
_ Prazer, sou Ricardo Rangel – quase estica um dos braços, mas desiste logo no começo, percebendo que a moça não olha nem um pouco pra ele. Continua mexendo em sabe lá o quê naquele aparelho eletrônico.
_ Nome de perfil: Maggie Barbie. Nome original é Margareth Barbosa. Antiquado. Momento de reconfiguração. Bateria precisando ser recarregada.
_ Você precisa de um carregador... Maggie?
_ Não, um sanduiche me recarrega. O GPS já está me indicando um restaurante por aqui.
_ Tem um ali à esquina. É que eu só almoço lá. Sou de Minas. Uma cidadezinha pequena. Não tem nem 10 mil habitantes.
_ Cidade natal: Rio de Janeiro. Cidade atual: Rio de Janeiro. Tenho 25 mil amigos.
_ Popular você, hein? – soou surpreso, disfarçando com ironia. – Então, Maggie, você poderia almoçar comigo...
_ Estou sincronizando nossos perfis. Vendo compatibilidades. Achei seu nome pelo Bluetooth.
Surpreso, ele diz, um sorriso discreto:
_ Rápida, você, né?
_ Já fiz meu pedido. Foto do prato postada.
_ Minha nossa... Mas você ainda nem comeu.
_ Atualizações frequentes fazem parte do novo programa. Programa, você tem?
_ Programa?! O que... Você...
_ Hum... Serviço indisponível! – quase gritou, agitada de uma forma inesperada.
_ Hã? O quê?
_ Ou seria status off-line? – soltou mais uma.
_ Você está bem? – em pensamento imaginava coisas como: Bebeu? Usou drogas? Louca? Dia ruim?...
_ Acho que vai ser logout mesmo.
Ricardo nada falou desta vez. Passou uma das mãos pelos fios que caiam sobre sua testa. Sentia-se mais confuso do que na primeira vez que pisara na cidade grande.
            O elevador chega ao andar desejado por ambos. Abre.
_ Até mais, usuário! Bye, man! – a moça caminha apressadamente, continuando distraída a mexer no item que não se afasta. – Estará na próxima sessão?
_ Não. Quero dizer, não sei.
O recepcionista do prédio é a primeira pessoa a quem Ricardo pode recorrer após o instante passado.
_ Moça esquisita, meu caro. Acho melhor eu voltar a falar com minha namoradinha do interior. Essas meninas da cidade estão vivendo em outro planeta.
_ Ih... Eu me casei há cinquenta anos. E agora que você percebeu que os homens e as mulheres são de mundos diferentes, rapaz?

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Mais um trecho


Um romance, novela, conto... Não sei qual rótulo melhor comporta a obra e os personagens que me perseguem desde a adolescência, mas só sei que lembrar de "uma história de medo, solidão e mistério" ajuda a me orientar quando escrevo. Uma espécie de homenagem a tantas narrativas do gênero que fizeram e fazem parte da minha trajetória. Segue mais um trecho não definitivo do "Projeto das Luzes Apagadas", como provisoriamente o chamo:

"Elizabeth organizava algumas caixas de materiais que não serviam mais para a casa e precisaria se livrar o quanto antes para deixar o porão mais limpo e arejado. Achou até apostilas de Steven dos seus tempos de faculdade, ainda datilografadas e com marcas de furos de traças. Também escondidos em meios aos papéis estavam rascunhos de desenhos que fazia a lápis antes de partir de vez para o trabalho com os pincéis, por volta dos 12 anos. Mofados e borrados, ela nem se lembrava de que ainda tinha aquilo. Uma mulher delgada, de olhar penetrante, nariz grande, boca sensual, vestido escuro, dos tipos comuns nos anos 20, era do jazz. Viu-se novamente um tanto jovem, em posição semelhante, a que estava agora: sozinha em algum canto da casa ou ao pé de uma árvore grande da fazenda, despreocupada com o tempo e concentrada nas linhas e todas as emoções que uma figura humana deveria ter em uma representação. Um estado de excitação. Era como se a mulher, a qualquer momento, fosse desaparecer de sua frente, assim como alguém que é espiado em uma janela e pode fechar a cortina e não ser visto tão cedo por aquele que o observa curioso. Um voyeur analisando sua própria criatura, limitada pelas bordas físicas do material. Beth amassou os papéis, colocou-os em sacolas plásticas e saiu do porão, deixando a porta trancada".

sexta-feira, 30 de maio de 2014

A classe operária vai ao shopping... Hã?




Que sempre vivemos em mundo de contradições não é preciso pesquisar nem recorrer a filósofos e historiadores para comprovar. Mas quando nos vemos como reflexos dessas contradições, seja por meio de sentimentos que não entendemos, voláteis, efêmeros, o que for, é aí que sentimos ainda mais como é o mundo. O inferno é aqui? Ou seria o purgatório. Dante, Dante...
É ano de eleição e já estamos sendo encharcados de águas muitas vezes das mais sujas. São acusações de todos os lados, governistas e oposicionistas que se atracam em seus discursos tantas vezes prolixos quanto puderem. E nossos problemas históricos e sociais ficam ainda mais expostos tal como veia cortada, jorrando sangue doente, claramente sabido anteriormente ou tapado com material barato.
De um lado fala-se da melhora de vida de uns, da inclusão, dos empregos... Do outro, escândalos de corrupção, obras não feitas, gastos exorbitantes desnecessários. Preciso deixar claro que não estou tomando partido de nenhum lado. Escrever esse texto é, inclusive, uma forma de eu tentar entender e chegar a alguma conclusão (se é que possível) sobre a situação atual do país. Na minha humilde condição de jornalista interiorano recém-formado, sei de minhas limitações para expor pensamentos que podem exigir interpretações muito amplas, mas sou, acima de tudo, cidadão e eleitor brasileiro. Clichê dizer isso, mas é importante não esquecermos o que são essas palavras em sua acepção.
Dos últimos meses pra cá, alguns assuntos, a meu ver, foram os mais recorrentes, além dos que já citei anteriormente anunciados e refutados pelos dois lados que pretendem ocupar o cargo mais alto da nação este ano. Protestos que chegam a irritar de tão repetitivos (apesar de nascidos de forma tão atraente em meados do ano passado), a tal preservação da família, a dona maconha, os menores infratores, os cada vez mais procurados recursos para garantir a segurança em casa – como me preocupo com essa era dos “Carandirus de luxo” –, as fontes de energia renovável em meio ao caos que a falta de água e a poluição já vêm causando (o que não é novidade, mas sabemos o quanto os interesses financeiros ainda são uma pedra no sapato da sustentabilidade)... Uma lista que exige dias e dias de elaboração.
As coisas melhoram de um lado, retrocedem cá, empacam lá... Quando nos comparamos a atrasadíssimas nações (se é que assim podem ser chamadas) da África e Ásia, onde ser mulher ou querer se expressar sua opinião e sentimentos pode ser morte certa, parecemos viver num paraíso. Seria? O paraíso das bananas, na visão caricata de estrangeiros leigos ou mesmo brasileiros chatos que se autodepreciam.

Enfim, em meio a esse imbróglio todo, só preciso dizer que, mesmo tendo um irritante pessimismo, aflorado quando ando na rua ou vejo notícias lamentáveis na televisão (se bem que esta já dá tristeza por si própria), eu acredito mesmo em um mundo melhor. E isso não é ironia nem discurso utópico. Não quero mais pensar no título daquela canção “Pare o mundo que eu quero descer” como algo que eu gostaria de fazer. Seja você aquele que está pisando no aeroporto pela primeira vez ou você que mora em uma cobertura carioca e aprecia os tiroteios noturnos dos morros como se fossem fogos pipocando no réveillon, veja que ano de mudanças é sempre bom para reavaliarmos o nosso meio e, por que não, nós mesmos.